O filho que eu não quis

Novembro 4, 2015 at 3:30 am

Talvez foram as palavras que ele usou. Ou o jeito, o tom da voz, os sentimentos por trás das palavras.

“Ninguém me ama. Nem minha própria mãe, a mulher que me carregou na barriga.”

É uma frase que te derruba.

“Nem minha mãe que me carregou na barriga …”

Ele estava sentado no banco de trás do meu Toyota, ele ainda era muito pequeno pra sentar no banco da frente. Com 7 aninhos, ele já tinha se mudado de casa mais vezes do que o número de anos que ele tinha vivido. E desta vez, como das outras vezes, ele se mudava com suas coisinhas em uma sacola de lixo. Uma mochila, pelo menos, tornaria essa situação horrível um pouquinho mais digna: ser trocado de casa em casa várias e várias vezes antes mesmo de chegar na terceira série. Sacos de lixo rasgam. Sacos de lixo não conseguem segurar o peso de uma vida, especialmente uma vida tão frágil como a de uma criança. O peso faz com que estas sacolas se rompam, assim como estas vidas. (aqui nos EUA, as crianças que não tem família ou foram afastadas da família por questão de violência não vão para orfanatos. Elas são colocadas na casa de famílias que se registram pra receber crianças temporariamente em estas situações. O problema é que muitas vezes as famílias mudam de idéia e já não querem a criança mais em sua casa. A assistente social então precisa encontrar uma nova família temporária pra essas crianças.)

Esta mudança foi mais difícil para o Estevão do que as outras. Ele estava em uma casa na qual ele pensou que iria ficar, pelo menos por um tempo. Ele se sentiu querido ali. Quando eu fui o buscar, depois de receber o aviso de sua “mãe  temporária” de que ele não poderia mais ficar, ele veio facilmente comigo. Cabeça abaixada, sem nenhuma reação externa. Foi só quando ele entrou no carro que ele começou a chorar e soluçar aquele tipo de choro que vem do fundo da alma.

Ele mal podia falar. “Ninguém me ama. Nem minha mãe que me carregou na barriga.”

Meses antes, na mesma circunstância (outra família temporária, outra remoção), ele brigou. Corria na sala de estar, se escondia atrás da mobília, se recusando a deixar outra casa, outra vez. Mas desta vez não. Ele já não tinha forças pra lutar.

Este foi o Estevão com 7 anos.

Estevão com 9 anos de idade segura a sua carteira de identifcação com toda sua informação de todos os anos que tem esperado por um lar com suas mãozinhas suando. Eu, sua assistente social, estou o levando a um evento de adoção, no qual ele vai encontrar famílias que querem adotar uma criança mais velha. Famílias que não excluem automaticamente crianças que, como dizem por aí, já viveram muito para serem adotados. E ele quer tanto os impressionar. Ele quer impressionar estes estranhos, na tentativa de ser amado. Ele quer ganhar o coração deles, então ele traz o seu boletim de criança adotiva pra mostrar pra eles que ele é uma boa criança, uma criança digna de ser amada.

Uma criança nunca deveria ter que provar que ela é digna de ser amada.

Estevão com doze anos me diz que eu sou sua melhor amiga. Eu sou sua assistente social, e ele deveria ter um melhor amigo de verdade, como outras crianças, mas eu não digo isso para ele. Nós estamos a caminho da emissora de tv, eles tem um quadro do jornal que mostra crianças que estão a espera de um lar. O Estevão vai muito bem em frente das câmeras. Talvez alguém vai querê-lo desta vez. Talvez, já com 12 anos , ele já provou que ele é um menino digno de ser amado e cuidado. E ele realmente é adorável. Mas isto não é suficiente e uma família nunca aparece.

Anos depois, tempos depois que eu sai daquele trabalho, eu recebo um email do meu antigo chefe me perguntando como eu estou e com um observação no final: “Estevão está numa pior depois de ter saído de mais um lar temporário. Você precisa adotá-lo.” Meu corpo inteiro arrepiou. Eu pensei nisto muitas vezes. Eu deveria adotá-lo, mas eu nunca o fiz.

Eu soube do seu assassinato através de uma amiga que viu a notícia no jornal. Levou um tiro do lado de fora de uma festa por um motivo bobo. Morto aos 18 anos, morto no momento que entrava na idade adulta. Não o meu Estevão! – eu orei.

Quando eu percebi que era realmente ele, eu chorei, aquele choro que vem da alma.

O jornal deu uma notícia bem pequena sobre o assassinato, como se a vida dele não merecesse atenção. Pessoas anônimas postaram comentários maldosos: “apenas mais um menino de gangue”, eles diziam.

“Vocês nem conhecem ele. Vocês não sabem nadas sobre este menino. Vocês não sabem que quando ele era menino, ele gostava de desenhar letras no ar com seus dedos enquanto a gente esperava pela consulta médica, e me pedia pra adivinhar que frase ele estava escrevendo: “Eu amo você” foi o que ele escreveu na última vez que jogamos este jogo.

O Estevão estava errado aquele dia no meu Toyota. Sua mãe que o carregou na barriga amava sim ele, do seu jeito. Ela estava lá, no funeral dele. Ela me recebeu gentilmente. Eu acho que ela sabia que eu amava o Estevão assim como eu sabia que ela o amava. Nós duas falhamos com ele, e aquilo nos unia, eu imagino. Nenhuma de nós deu a ele o que ele mais queria: uma família.

Na casa funerária, nenhuma foto da infância do Estevão. Nenhuma foto do menininho de olhos verdes com um sorriso doce pra nos lembrar do que nós perdemos. Não havia nenhuma foto do Estevão com seus irmãos, então eu imprimi rapidamente uma foto dos quatro meninos juntos, que eu tirei numa das poucas visitas supervisionadas na qual todos se reuniram com os pais e as levei ao funeral pra entregar a família. Era algo pequeno que eu poderia fazer, comparado com a minha impotência naquele momento.

Algumas assistentes sociais estavam lá mas nenhuma das mães temporárias dele. Será que elas souberam o que aconteceu? O Estevão passou a maioria da sua vida sendo criado pelo governo.

Pelo menos sua mãe estava lá. Sua mãe que o carregou na barriga. Eu ouço até hoje o eco da sua voz naquele carro…. “ninguém me ama, nem minha própria mãe que me carregou na barriga…”

Alguém te ama, Estevão. Eu quero dizer pra ele. Mas é muito tarde.

O Estevão representou pra mim toda a dor de uma criança com a qual nós  todos falhamos. Eles se machucam, você sabe. Essas crianças que vão ficando pra trás, sendo ignoradas. Eventualmente elas se machucam.

 

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Texto escrito pela assistente social Liz Curtis Faria, que acompanhou o caso do menino durante anos –  este texto foi traduzido pelo mamaereal.com com autorização da autora e o original pode ser lido aqui

Por que publiquei este texto no blog? 

1) Acredito que a adoção é uma das coisas mais lindas que existem na terra, provavelmente o maior reflexo do amor de Deus.

2) Acredito que nós, a igreja, como corpo de Cristo precisamos acordar pro nosso chamado. Quem temos abençoado? Se somos o corpo de Cristo na terra, aonde as mãos de Cristo tem tocado? Para quem a boca de Cristo tem ministrado? Aonde os pés de Cristo tem ido?  Cristo sente infinita compaixão por cada criança que sofre. E nós, sua igreja, temos nos compadecido?  “A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades” Tiago 1:27

3) Este texto mostra claramente que cada criança nasce com uma necessidade de ser amada incondicionalmente. Temos amado nossos filhos? Temos cuidado dos sentimentos deles? Ou será que temos muitos órfãos dentro dos nossos próprio lar? Crianças que tem tudo materialmente mas que estão famintos de amor e cuidado?

 

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